Borgonha - sofisticação e elegância em seu estado mais puro
Passagem comprada, me debrucei nos livros e teclado para traçar meu roteiro. Confesso que a tarefa não foi fácil. A Borgonha é de fato uma região peculiar, bem diferente de outras regiões vitivinícolas pelo mundo. A primeira característica que a diferencia é o tamanho das propriedades. A Borgonha possui inúmeros pequenos produtores, muitas vezes negócios de família, empresas que não chegam a ter uma estrutura de suporte a visitantes. Com isso, há visitas quando os proprietários estão disponíveis e podem receber os visitantes. Quando visitamos a região, em outubro, era o período subsequente à vindima e muitas propriedades alegaram que todos os empregados estavam envolvidos nos processos de produção e não havia ninguém para nos receber. A segunda característica, de certa forma oposta à primeira, é a fama alcançada pelas propriedades mais renomadas. Visitar o Domaine Romanée-Conti, por exemplo, é uma ideia tão absurda quanto querer visitar o Papa só porque você está indo à Roma. E tal situação não ocorre apenas com esta propriedade emblemática, muitas outras também não estão abertas a receberem visitantes.
Um outro aspecto que torna a região peculiar é a questão da localização física das vinícolas. Como descrito no artigo “Chablis”, os vinhedos da região da grande Borgonha (veja o mapa de Chablis, Châtillonnais, Côte de Nuits, Côte de Beaune, Côte Chalonnaise e Mâconnais) se localizam distante das vinícolas. As propriedades possuem seu processo de produção e adega em uma localidade central e são donas de parte de diversos vinhedos, dos mais simples aos mais valiosos, espalhados por inúmeras regiões. Portanto, visitar uma vinícola, sua adega, degustar alguns rótulos e comprar algumas garrafas é uma coisa, conhecer o vinhedo e as plantações é outra diferente.
Ao planejar meu roteiro, estava focado em conhecer pelo menos uma propriedade em Vosne-Romanée e uma em Puligny-Montrachet, pois gostaria de degustar os vinhos destas regiões renomadas. Perda de tempo! Não que visitar estas regiões não tenha sido um grande prazer, mas inúmeras propriedades ao longo da Borgonha são donas de parte dos vinhedos destas regiões. Ou seja, fique a vontade para planejar seu roteiro com base nos lugares que queira conhecer e nas propriedades que queira visitar. Mas não se prenda a ir a uma determinada região para degustar os vinhos daquele terroir, visto que inúmeras propriedades possuem rótulos das mais diversas regiões.
Beaune – a capital da Borgonha
Utilizamos Beaune como base para o deslocamento por toda a região. A cidade é linda, pitoresca e possui inúmeros hotéis para todos os bolsos. Além de ficar bem no meio da Côte D’Or, tendo a Côte de Nuits ao norte, com seus vinhos tintos, e Côte de Beaune ao sul, lar dos vinhos brancos, possui diversos pontos turísticos obrigatórios. Um deles é o Hospices de Beaune, hospital do século XV que se manteve em operação até a década de 70. Anualmente o Hospices promove um famoso leilão para a venda de vinhos produzidos sob o rótulo do próprio Hospices. A situação inusitada ocorre pois ao longo de seu funcionamento o hospital ganhou terras de pacientes e doadores ilustres. Hoje, o Leilão do Hospices de Beaune é um evento marcante para proprietários e negociants da Borgonha pois os preços alcançados nos leilões estabelecem o padrão comercial para todos os vinhos da região. O leilão ocorre anualmente no terceiro domingo de novembro. Se for possível estar na cidade nesta época, acredito que a experiência será marcante.
Vosne-Romanée e Puligny-Montrachet – O primeiro dia de visita às vinícolas
O Domaine de la Romanée-Conti está para a Borgonha assim como a torre Eifel está para Paris. Mas a não ser que você seja um cliente tradicional da casa, um crítico de renome ou alguma personalidade pública, pode esquecer visitar a propriedade ou fazer degustações. O máximo que pode ser feito é visitar os vinhedos da propriedade e tirar uma foto com a famosa estátua em forma de cruz que marca a plantação. Bem, para os realmente apaixonados por vinhos, vale também dar uma espiadinha pelo portão da propriedade e, quem sabe, tirar uma selfie com a campanhia do edifício que de forma tão mundana e ordinária apresenta em um pequeno pedaço de papel o emblemático nome que faz tremer qualquer amante de bons vinhos.
Na esperança de aprender um pouco mais sobre a região do badaladíssimo rótulo, fomos até Vosne-Romanée e visitamos o Domaine Michel Gros. Filho de um tradicional produtor da região, o Sr. Michel Gros herdou algumas terras do pai, da mesma forma como a prima Anne Gros. Hoje, Anne alcança uma maior reputação nos rótulos produzidos, mas o Domaine Michel Gros não fica atrás na dedicação em produzir vinhos de altíssima qualidade.

A última parada do dia foi no Domaine Laflaive, em Puligny-Montrachet. O renome da propriedade é traduzido em uma experiência fria e impessoal: degustação paga, roteiro pré-definido e um estudante japonês falando sobre as peculiaridades dos terroirs locais. Nada contra o simpático estudante, mas o contraste com a funcionária super-francesa do Domaine Michel Gros foi evidente. Os vinhos do Domaine Laflaive são predominantemente brancos, fruto do terroir da Côte de Beaune, onde está situada a maior parte dos vinhedos da propriedade. Elegantes e muito sofisticados compensam com facilidade a receptividade que deixa um pouco a desejar.
Nada como ser um local para desvendar alguns segredos da Borgonha
Durante minhas pesquisas para a preparação do roteiro na região, me deparei com uma excelente dica no blog Conexão Paris. O post “Beaune: capital do vinho da Borgonha” citava os serviços da Aline Mendonça, brasileira radicada na Borgonha cujo destino a levou para perto dos vinhos. Através dos serviços de tradução, Aline acabou se especializando nos conhecimentos vitivinícolos e hoje realiza visitas a propriedades, vinícolas e vinhedos de forma customizada para cada cliente. Dada a complexidade da região, as inúmeras sub-regiões, os milhares de produtores, achei uma excelente ideia ter uma guia local. E brasileira ao mesmo tempo.
Nossa próxima parada foi no Domaine Jean Monnier & Fils. A loja da propriedade fica no centro da pequena cidade de Meursault. Lá, degustamos alguns excelentes rótulos, predominantemente brancos. Situada na Côtes de Beaune, Meursault produz em sua grande maioria (98%) vinhos brancos, não possui nenhum vinhedo Grand Cru mas inúmeros Premier Cru.


A última parada do dia foi na propriedade Ropiteau. Mais uma vez, a Aline nos abriu algumas portas que possivelmente estariam fechadas se estivéssemos sozinhos. Chegamos à propriedade após o horário de funcionando e, mesmo assim, fomos muito bem recebidos. Além disso, pudemos visitar a cave onde acontecia, naquele exato momento, o processo de fermentação dos vinhos da safra 2014. Ouvimos a música emanada pelo borbulhar do vinho em transformação direto dos barris de fermentação.
Quanto aos rótulos, todos de excelente qualidade. Tivemos a oportunidade de degustar o Vosne-Romanée 1er Cru Les Suchots, safra 2005, sugerido pelos funcionários do domaine Pierre André como um vinho comparável (respeitando as devidas proporções) ao Romanée-Conti. Leia a avaliação aqui.
Um até breve. Mas de taça cheia.
Em nosso último dia na Borgonha, apertamos a agenda para encaixar mais algumas degustações antes de pegar a estrada em direção a Beaujolais e Cotês du Rhône. Começamos pela Marché aux Vins, loja no centro de Beaune que apresenta um esquema de degustação diferente. O ingresso para a degustação lhe garante uma taça (no caso da degustação completa) ou um tastevin (degustação simples). A partir daí adentramos à cave do estabelecimento onde encontramos os vinhos expostos sobre antigos barris de carvalho. A degustação acontece então como uma caça ao tesouro: vamos andando pela cave à procura das garrafas sobre os barris. A loja é bem organizada, a cave não apresenta atributos arquitetônicos diferenciados e os vinhos disponíveis são, em geral, bons. Não encontramos nenhum excepcional para degustar, mas acabamos comprando alguns com uma boa relação custo-benefício.
Esta última visita foi de fato um dos pontos altos da viagem. Não pela propriedade ser suntuosa, elegante ou coberta de fama e glamour. Pelo contrário, a família Bouley é simples e dedicada a investir muito suor na produção de seus vinhos. E é exatamente isso que fez desta visita muito especial. Ouvir Madame Bouley falar apaixonadamente de seus vinhos, ouvir as estórias de seus antepassados que começaram toda a história do Domaine, conversar com o filho do casal que estudou enologia e hoje auxilia o pai na produção, estas sim são experiências que mostram quanto o mundo dos vinhos é mágico.
Borgonha é isso: um misto de algumas grandes propriedades e inúmeras outras familiares. Milhares de sub-regiões e terroirs, identificados, delimitados e apreciados ao longo de séculos de história. Acabei descobrindo que desvendar todas as maravilhas que se escondem em cada colina é um trabalho para toda uma vida. Que boa notícia!